A FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty), maior festa literária do país, em treze edições do evento, irá homenagear uma mulher pela segunda vez, a poeta carioca Ana Cristina Cesar. A primeira foi Clarice Lispector, em 2005.
A literatura sempre foi muito fechada para as mulheres. Virginia Woolf já denunciava a falta de reconhecimento e espaço no meio editorial: “Por muito tempo na história, “anônimo” era uma mulher.” Minimizadas e inferiorizadas muitas mulheres acabaram desistindo de escrever, ou recorriam aos pseudônimos masculinos para serem ouvidas. (Como George Sand, o pseudônimo de Amandine Aurore Lucile Dupin). Na Academia Brasileira de Letras, dos seus atuais 40 membros, só 5 são mulheres.
Mas e você, conhece Ana Cristina Cesar?
Além de poeta, Ana foi uma excelente crítica literária, ensaísta e tradutora, considerada um dos principais nomes da Literatura Marginal nos anos 70.
Nascida no Rio de Janeiro, em 2 de junho de 1952, filha do sociólogo e jornalista Waldo Aranha Lenz Cesar (fundador da Editora Paz e Terra) e de Maria Luiza Cruz, Ana nasceu em uma família culta e protestante de classe média. Irmã de Flávio e Filipe.
Aos seis anos de idade, já ditava poemas para sua mãe. Em 1969, Ana Cristina Cesar viajou à Inglaterra em intercâmbio e passou um período em Londres, onde travou contato com a literatura em língua inglesa. Quando regressou ao Brasil, com livros de Emily Dickinson, Sylvia Plath e Katherine Mansfield nas malas, dedicou-se a escrever e a traduzir, entrando para a Faculdade de Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), aos dezenove anos.
Ana Cristina Cesar teve poemas incluídos na importante antologia “26 poetas hoje” (1976), organizada por Heloísa Buarque de Holanda, sua ex-professora. Em 1982, é lançado o primeiro volume da célebre coleção Cantadas Literárias, “A teus pés” reunia três livros publicados em edição artesanal: os versos de “Cenas de abril”, “Correspondência completa” (longa carta endereçada a “My dear”) e o diário “Luvas de pelica”. Sua poesia foi reunida no volume “Poética” (Companhia das Letras, 2013).
Cometeu suicídio aos trinta e um anos, atirando-se pela janela do apartamento dos pais, no oitavo andar de um edifício da rua Tonelero, em Copacabana.
Leia algumas poesias:
CIÚMES
Tenho ciúmes deste cigarro que você fuma
Tão distraidamente.
Abril/68
A ponto de
partir, já sei
que nossos olhos
sorriam para sempre
na distância.
Parece pouco?
Chão de sal grosso e ouro que se racha.
A ponto de partir, já sei que
nossos olhos sorriem na distância.
Lentes escuríssimas sob os pilotis.
Esqueceria outros
pelo menos três ou quatro rostos que amei
Num delírio de arquivística
organizei a memória em alfabetos
como quem conta carneiros e amansa
no entanto flanco aberto não esqueço
e amo em ti os outros rostos
Estou atrás
do despojamento mais inteiro
da simplicidade mais erma
da palavra mais recém-nascida
do inteiro mais despojado
do ermo mais simples
do nascimento a mais da palavra
28.5.69
Apaixonada,
saquei minha arma,
minha alma,
minha calma.
Só você não sacou nada.
Deus na Antecâmara
Mereço (merecemos, meretrizes)
perdão (perdoai-nos, patres conscripti)
socorro (correi, valei-nos, santos perdidos)
Eu quero me livrar desta poesia infecta
beijar mãos sem elos sem tinturas
consciências soltas pelos ventos
desatando o culto das antecedências
sem medo de dedos de dados de dúvidas
em prontidão sangüinária
(sangue e amor se aconchegando
hora atrás de hora)
Eu quero pensar ao apalpar
eu quero dizer ao conviver
eu quero partir ao repartir
filho
pai
e
fogo
DE-LI-BE-RA-DA-MEN-TE
abertos ao tudo inteiro
maiores que o todo nosso
em nós (com a gente) se dando
HOMEM: ACORDA!
Tenho uma folha branca
e limpa à minha espera:
mudo convite
tenho uma cama branca
e limpa à minha espera:
mudo convite
tenho uma vida branca
e limpa à minha espera.
Olho muito tempo o corpo de um poema
olho muito tempo o corpo de um poema
até perder de vista o que não seja corpo
e sentir separado dentre os dentes
um filete de sangue
nas gengivas
Cabeceira
Intratável.
Não quero mais pôr poemas no papel
nem dar a conhecer minha ternura.
Faço ar de dura,
muito sóbria e dura,
não pergunto
“da sombra daquele beijo
que farei?”
É inútil
ficar à escuta
ou manobrar a lupa
da adivinhação.
Dito isto
o livro de cabeceira cai no chão.
Tua mão que desliza
distraidamente?
sobre a minha mão
A 14a edição da Flip acontece entre os dias 29 de junho e 3 de julho.